Idosas resistem a construção de prédio novo em área nobre de Fortaleza e viram as últimas moradoras de condomínio antigo
17/05/2025
(Foto: Reprodução) As idosas afirmam que têm vivido uma situação de constrangimento depois que os outros moradores aceitaram a proposta da empresa e começaram a derrubar parcialmente seus próprios apartamentos. A construtora que pretende levantar o novo prédio diz que as tentativas de negociação com elas ainda não avançaram. Idosas resistem a construção de prédio novo em área nobre de Fortaleza
Duas idosas se tornaram as últimas moradoras de um condomínio com 24 apartamentos em um bairro nobre de Fortaleza após um impasse sobre a demolição dos prédios. A área onde elas moram é visada por uma construtora para um novo edifício. O advogado de uma delas afirma que elas têm vivido uma situação de constrangimento depois que os outros moradores aceitaram a proposta da empresa e começaram a derrubar parcialmente seus próprios apartamentos.
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Ao g1, moradores favoráveis ao acordo afirmam que não houve intenção de causar estado de ruína no prédio, mas sim remover as portas e janelas para revender os itens, uma vez que, após aceitar a proposta da construtora, os proprietários desocuparam seus apartamentos.
Conforme os documentos aos quais a reportagem teve acesso, em uma assembleia geral realizada em janeiro de 2025, 22 dos 24 condôminos dos prédios aceitaram a proposta da construtora para demolir as duas unidades e construir um novo edifício de 21 andares, no qual os moradores receberiam apartamentos novos.
Os apartamentos 104 e 202 recusaram a proposta de permuta da construtora, afirmando que preferiam a venda do imóvel, e se opuseram à desconstituição do condomínio na assembleia. São justamente as unidades onde vivem as moradoras idosas, que têm 85 e 75 anos, respectivamente. Na assembleia, elas estavam representadas pelas filhas.
A disputa envolve dois edifícios, chamados Ângela e Kátia, que fazem parte de um bloco de cinco prédios localizado a cerca de 250 metros da avenida Beira-Mar, um dos metros quadrados mais caros da capital cearense. Os edifícios têm cerca de 50 anos, com apartamentos de 140m², sendo doze unidades por prédio.
Após o resultado, os moradores das outras unidades começaram a desocupar seus apartamentos. Desde então, as duas idosas vivem praticamente sozinhas no edifício Ângela, que tem apenas dois dos doze apartamentos ocupados. Todos os outros apartamentos do edifício Kátia estão vazios.
Condomínio Ângela e Kátia é localizado em bairro de área nobre de Fortaleza, próximo à avenida Beira-Mar
Reprodução/GoogleMaps
Uma das justificativas para a demolição dos prédios antigos e a construção do novo seria o estado de conservação das unidades. Laudos técnicos contratados por alguns moradores apontaram que os prédios correm risco crítico pela falta de manutenção. Já o laudo contratado por uma das idosas aponta que o prédio precisa de reformas, mas não corre risco estrutural.
O laudo da Defesa Civil, órgão responsável pela análise de risco dos edifícios, falou em risco moderado – quando não há dano grave à estrutura ou perigo de desabamento, mas são necessárias reformas para evitar que a edificação se deteriore.
Na assembleia de janeiro, os condôminos votaram contra as reformas no prédio e a favor da desconstituição do condomínio - isto é, pelo encerramento do CNPJ. Eles então elegeram uma moradora como liquidante, responsável por contratar os serviços de demolição e resolver pendências jurídicas e financeiras.
Proposta recusada e desocupação
Após a assembleia, em algumas unidades, os proprietários também realizaram uma espécie de demolição parcial, retirando esquadrias, como portas e janelas, retirando o piso e derrubando algumas partes, como áreas da cozinha.
O g1 teve acesso a imagens que mostram alguns apartamentos com piso arrancado, sem grades nas varandas, sem janelas, algumas paredes quebradas e colunas parcialmente danificadas.
Apartamentos dos edifícios em disputa estão com sinais de demolição, conforme laudo da Defesa Civil
Reprodução
Em abril, uma decisão judicial anulou os efeitos da assembleia geral na qual a maioria dos moradores optou pelo fim do condomínio e proibiu a continuidade das obras de desmanche dos apartamentos, afirmando que elas trariam "uma situação de risco iminente”.
Conforme o advogado Stênio Gonçalves, que representa a senhora Maria Elisier, de 85 anos, moradora do apartamento 104, as obras de desmanche têm sido feitas como forma de deixar o edifício em estado de ruína e, assim, convencer as idosas a aceitarem o acordo.
Ele diz que as duas não são contra a construção do novo prédio, mas não aceitam a proposta de permuta – trocar o apartamento atual por outro no prédio que ainda será construído –, uma vez que, devido à idade avançada e o prazo de construção do edifício, temem não poder usufruir do novo bem. Elas pedem que, em vez de permuta, seja feita a compra dos apartamentos delas.
O advogado afirma que, em um encontro com representantes da Reata Engenharia, a empresa chegou a propor a compra do apartamento por uma quantia que, conforme as estimativas do advogado, representaria cerca de um quarto do valor dos novos apartamentos que os condôminos vão receber.
A construtora Reata, responsável pela proposta do novo condomínio, afirma que foram feitas propostas tanto em formato de permuta quanto de compra, mas que elas foram recusadas pelas representantes das idosas.
"Entendemos que as filhas das senhoras, que não moram lá, enxergaram uma oportunidade de auferir um ganho estratosférico. Como ficamos impedidos de atender isso, as pessoas que integram o condomínio sentiram a necessidade de buscar uma solução alternativa, com o devido amparo legal", disse a empresa.
"A empresa se conforta pelo fato de ter ajudado 22 famílias que já se encontram fora de risco, morando com segurança e acessibilidade. Esperamos que o impasse interno do condomínio se resolva com a maior brevidade, dentro do que é previsto em lei, retirando, finalmente, as duas moradoras que lá se encontram, dessa situação de risco e isolamento. Nesse sentido, fazemos um apelo à consciência das duas filhas", destacou a construtora.
Condomínio em bairro nobre vive disputa entre moradores a favor de proposta de construtora e moradoras contrárias
Reprodução
Uma longa proposta
A discussão acerca da demolição do condomínio começou em 2013, quando a construtora Reata teve a primeira reunião com os moradores dos edifícios Kátia e Ângela. Nos anos seguintes, a empresa chegou a fazer algumas propostas, que foram recusadas.
O acerto avançou a partir de 2018, quando investidores ligados à construtora compraram algumas unidades no condomínio. Nos anos seguintes, uma nova proposta começou a ter adesão de outros moradores.
A ideia apresentada pela construtora era a seguinte: demolir os edifícios Ângela e Kátia e construir uma nova torre, de mais de 20 andares, com três apartamentos por andar. As obras, conforme a construtora, teriam previsão de durar cerca de 24 meses. Nesse meio tempo, a empresa iria dar uma ajuda de custo aos moradores deslocados para o pagamento de aluguel.
Em outubro de 2024, uma assembleia de moradores foi realizada no apartamento 103, ao lado do apartamento 104, onde vive Maria Elisier. Na ocasião, foi discutido um plano de ação para convencer as duas a aceitar a proposta – ou, se necessário, resolver o problema por via judicial. Uma das presentes, inclusive, sugeriu cortar a água do apartamento das senhoras.
Na mesma reunião, foram discutidas as reformas necessárias para resolver os problemas estruturais do condomínio, sobretudo no telhado, que sofre de infiltrações na quadra chuvosa. Também ficou acordado que seria feito um levantamento de valores da possível reforma.
Quando os moradores se reuniram em janeiro de 2025 foi apresentado um orçamento de reformas com valor superior a R$ 2,1 milhões, que incluía, além dos consertos estruturais, obras de substituição da tubulação de gás e de fiação para adequação dos prédios aos padrões atualmente exigido. Dividido, o montante sairia por cerca de R$ 138 mil por apartamento ao todo, ou R$ 11 mil mensais.
A alternativa foi recusada e, logo na sequência, os moradores votaram pela dissolução do condomínio. As únicas que se opuseram foram as filhas das duas idosas, que representavam as mães nas reuniões.
Os outros 22 votos foram a favor do fim do condomínio e elegeram uma das moradoras, Renata Maia, como liquidante, responsável por resolver as pendências para extinção da moradia.
Problemas estruturais e permuta
Antes de ser nomeada liquidante, Renata Maia foi síndica do condomínio. Ao g1, ela afirmou que anualmente os prédios precisavam de obras de manutenção no telhado, sobretudo na quadra chuvosa, por causa das fissuras e outros problemas que causavam infiltrações nos apartamentos do terceiro andar.
Maioria dos moradores dos edifícios Ângela e Kátia votaram pela extinção do condomínio
Reprodução
Ela também conta que grande parte dos outros moradores são idosos e, com o passar dos anos, eles passaram a sofrer com problemas de mobilidade, uma vez que os prédios Ângela e Kátia não possuem itens como elevadores. Isso somado às constantes reformas que os edifícios exigiam teria convencido a maioria a aderir à proposta da construtora.
Ela diz que, em janeiro de 2025, quando houve a assembleia que determinou a extinção do condomínio, os moradores avaliaram que não valeria a pena pagar pelas reformas não só de recuperação da estrutura danificada, mas de adequação do prédio às normas atuais, que exigiam a modernização dos quadros elétricos e do sistema de gás.
"Os condôminos, os proprietários, vendo que não teriam condição de arcar com essas readequações, eles tomaram a atitude de sair daqui e realmente procurar um canto que proporcionasse uma maior qualidade de vida, uma maior mobilidade", afirma.
Renata lamenta a demora na negociação das moradoras dissidentes e afirma que o processo tem sido atrasado por interesses financeiros, enquanto outros condôminos, que já saíram, são prejudicados pela espera.
"A gente vai bancar todo o risco, a gente vai bancar a espera, a gente vai precisar passar pelo transtorno de se mudar pelo menos 2 vezes, a gente vai arcar com tudo isso", diz. "Eu enquanto pessoa espero que [o acordo] saia muito em breve. Eu enquanto representante do condomínio e dos condôminos, não tenho motivo nenhum para querer que isso se prolongue. Espero que a outra parte seja razoável"
Laudos técnicos
Conforme o advogado da moradora Maria Elisier, Stênio Gonçalves, houve um esforço por parte de interessados para provocar a sensação de que "o prédio está para cair", de modo a convencer todos a votar a favor da demolição do condomínio atual e a construção do novo. "Isso é mentira. O prédio é sólido", afirma.
Durante a reunião que decidiu pela dissolução do condomínio, foram apresentados slides com os resultados de uma vistoria feita em novembro de 2024 por um engenheiro civil e um engenheiro elétrico contratados pelo próprio condomínio.
No documento, os dois engenheiros classificaram o estado de conservação dos prédios como “ruim” e o grau de risco como “crítico”.
“O presente imóvel, bem como seus equipamentos, instalações e máquinas inspecionados, apresenta risco. Ora esse risco atinge um grau crítico, pois o desgaste atinge principalmente elementos estruturais, regularização de alvenaria, reparos de fissuras e trincas, substituições das instalações hidráulicas, elétricas, dos revestimentos de pisos e paredes, da impermeabilização e/ou cobertura do telhado”, diz o laudo.
Já em abril de 2025, um engenheiro civil foi contratado pela proprietária de um dos apartamentos dissidentes para fazer um laudo técnico das condições do prédio. O relatório afirmou que o prédio possui oxidações, fissuras e deslocamentos de revestimentos, mas não corre risco de desabamento.
“Não foram encontrados indícios de ruína estrutural, nem elementos que configurassem risco iminente de desabamento edificações com mais de 50 anos, as quais possuem solução técnica simples e viável mediante planejamento e execução de manutenções periódicas adequadas”, classificou o engenheiro.
Em 24 de abril de 2025, a Defesa Civil de Fortaleza esteve no condomínio para realizar uma inspeção. Em suas inspeções, o órgão classifica o risco de desabamento de um edifício em leve, médio, alto e crítico.
No caso dos edifícios Ângela e Kátia, a Defesa Civil classificou a situação como de risco médio, que poderia evoluir para crítico caso não fossem feitas reformas.
“Em suma, nos dois blocos (Kátia e Ângela) - os revestimentos, os pisos, os elementos estruturais de concreto armado (pilares, vigas, lajes) dos andares, as varandas, as escadarias, o hall dos pavimentos superiores, os pilares e a laje do pilotis da garagem “aparentemente” estão, em geral, em bom estado de conservação. Porém, algumas manifestações patológicas de corrosão em estruturas foram observadas na base do reservatório de água e em algumas vigas que necessitam de recuperação estrutural o mais breve possível. Além disso, outro ocorrido preocupante foi a remoção das esquadrias (portas, janelas, venezianas – meio de proteção que previne a entrada de ventos, umidade, vazamentos) das varandas de muitos apartamentos, favorecendo a influência de intempéries no interior dos ambientes dos imóveis, podendo os tornar em área molhada, assim propiciando infiltrações na laje”, destacou a Defesa Civil.
Apartamento preservado e outro parcialmente desmanchado; Defesa Civil alertou que retirada das esquadrias é risco no período chuvoso
Reprodução
Disputa na Justiça
Após a assembleia de janeiro de 2025, as moradoras das duas unidades que recusaram a proposta entraram na Justiça contra as medidas aprovadas pelos moradores de dissolver o condomínio.
Alguns moradores passaram a começar uma espécie de desmanche parcial dos seus apartamentos, com a retirada das portas, janelas e venezianas, bem como a remoção do piso. Nem todos apartamentos vazios estão assim quebrados: alguns continuam intactos, embora inabitados.
O caso foi analisado pela Justiça estadual que, no dia 16 de abril, emitiu uma decisão favorável às idosas, suspendendo os efeitos da assembleia de janeiro e ordenando que fossem feitos serviços para recuperar as áreas demolidas, de modo a reduzir os riscos.
A decisão do juiz Fernando Teles de Paula ordenou que os donos dos apartamentos e a construtora parassem de contratar empresas para demolir as unidades. “A continuidade das obras de demolição, que já se encontram em curso, configura situação de risco iminente, capaz de ocasionar danos permanentes e de difícil reparação”, avaliou.
O magistrado também destacou que os laudos técnicos apontam “para a necessidade premente de reforma e manutenção, mas não de intervenção expropriativa”. Ele também sugeriu que as partes se reúnam, no futuro, em uma audiência de conciliação para resolver a disputa.
Sobre a disputa judicial, a construtora Reata afirmou que "está arcando com os aluguéis de todos os moradores que já desocuparam o condomínio e, atualmente, estão morando em locais seguros, fora de risco e com acessibilidade. Nossa postura será a de aguardar o desfecho desse impasse interno do condomínio, esperando que seja respeitado o que é previsto em lei e que ocorra o que for melhor para todas as vidas envolvidas".
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